Caso porta-aviões desativado e um nicho de mercado para profissionais da química

Os noticiários repercutiram bastante o caso do porta-aviões São Paulo, que tem 265 metros de comprimento e uma massa de 32,8 mil toneladas. Essa embarcação foi afundada pela Marinha do Brasil em 03/02/2023, a 350 quilômetros da Costa Brasileira e com profundidade de cinco mil metros. O porta-aviões originalmente batizado de FS Foch foi construído nos anos 1950 no estaleiro naval Saint-Nazaire, na França, servindo à Marinha francesa durante 37 anos. No ano 2000, a embarcação foi incorporada à frota brasileira, mesmo sabendo dos potenciais riscos ambientais, o que acarretou uma série de problemas, incluindo um incêndio ocorrido em 2005 e que também foi motivo da desativação do mesmo, em 2018.

No ano de 2021, a embarcação foi adquirida pelo estaleiro turco Sök Denizcilik, com o objetivo de desmantelamento. A viagem rumo à Turquia foi iniciada em agosto de 2022. Porém, não foi autorizada a entrada no Estreito de Gibraltar, por problemas com o inventário de materiais perigosos (Inventory of Hazardous Materials – IHM, Resolução MEPC. 269(68) de 15/05/2015, anexo 17). No mesmo período, o órgão ambiental turco cancelou a autorização prévia concedida para admissão do navio na Europa, alegando risco ambiental, em função da quantidade de amianto presente no navio, que era estimada em 9,6 toneladas.

Sabe-se que o Regulamento da União Europeia n° 1257 de 2013, relativo à reciclagem de navios, considera que todo navio deve possuir o IHM. Esse inventário se divide basicamente em três partes: parte I – Lista de materiais que integram a estrutura do navio (amianto, PCBs, CFCs, entre outros); parte II – Lista de materiais resultantes das operações presentes a bordo; e parte III – Lista de provisões encontradas a bordo. Para navios novos, é obrigatório que a Parte I seja mantida atualizada ao longo do ciclo de vida, contemplando seus reparos e alterações. Por outro lado, para embarcações antigas não era realizado esse tipo de inventário, sendo necessário um levantamento dos materiais que compõem a estrutura do navio por meio de análises químicas e avaliação da documentação da época da construção. No caso de navios sem ser de guerra, a Convenção de Hong Kong de 2009 deve ser observada para verificar reciclabilidade da embarcação (ANTAQ, 2021). Em todo caso, Cournoyer et al. (2005) deixa claro que um sistema de inventários é fundamental, independe de extramuros, e o seu correto gerenciamento é a chave para o controle adequado dos produtos perigosos, seja qual for o setor, inclusive quanto a reciclagem de navios.

No contexto brasileiro, encontra-se em tramitação o Projeto de Lei n° 1.584 de 2021, que dispõe sobre a reciclagem de embarcações e prevê em seu texto original a necessidade de inventário de materiais perigosos como requisito para seu descomissionamento. Apesar de esse projeto não contemplar embarcações da Marinha e aquelas com menos de oito metros de comprimento sem motor, reacendeu diversas discussões da área naval, em particular sobre o descomissionamento verde, bem como sobre as embarcações abandonadas na Baía de Guanabara e as responsabilidades que quase não são assumidas pelos órgãos competentes. Para se ter ideia da importância desse assunto, em 14/11/2022, a ocorrência de uma colisão do navio São Luíz com a ponte Rio-Niterói deixou evidente a necessidade de modernização da legislação quanto à adequação dos estaleiros locais e a urgente atenção que deve ser dada aos descomissionamentos de embarcações abandonadas sob a jurisdição do Brasil, o que poderia, inclusive, gerar mais empregos diretos e indiretos.

O descomissionamento, também conhecido como desmantelamento, faz parte da fase final do ciclo de vida das embarcações que, de forma geral, trata-se de fragmentar as embarcações em tamanhos menores, a fim de trazê-los para terra e realizar a correta destinação dos resíduos. Para muitos especialistas, essa é a “melhor solução” ambiental de lidar com as estruturas abandonadas no mar, que muitas vezes possuem grande quantidade de hidrocarbonetos deixados em tanques, além de detritos de todos os tipos que podem cair no mar. Nesse sentido, essa etapa final do ciclo de vida é considerada uma etapa complexa, potencialmente perigosa, onerosa e com alto consumo de energia. É necessário, portanto, que seja bem planejada, implementada e que atenda às exigências das agências regulatórias e dos órgãos ambientais. Na maioria das vezes também se faz necessária a utilização de explosivos e isso pode afetar todo tipo de vida marinha ao redor das primeiras zonas de trabalho (Lakhal et al., 2009). Além de outros agentes químicos perigosos que podem ser encontrados, como é o caso do amianto do porta-aviões da Marinha.

Seja como for, a aposta pela economia do mar tem alavancado incentivos às melhores políticas quanto às atividades inerentes ao universo naval. O mar é visto, por muitos, como um agente econômico no que diz respeito à indústria da pesca, do turismo e da exploração de petróleo e gás offshore. Devido a isso, a Lei n° 9.466 de 2021, que cria a Política Estadual de Incentivo à Economia do Mar, como estratégia de desenvolvimento socioeconômico do Estado do Rio de Janeiro, tem sido relevante na criação de bases de negócios e investimentos nesse setor.

A importância do Brasil é notória e estratégica para o setor naval e lembra os inúmeros desafios que o país tem pela frente, especialmente quanto às diversas embarcações abandonadas e aos entraves legislatórios que ainda merecem atenção. Os desafios do descomissionamento brasileiro são muitos e com tamanhos e complexidade diferentes. O caso do porta-aviões é apenas um dos muitos alertas críticos envolvendo agentes químicos com muitas possibilidades de melhorias. Portanto, é apenas uma questão de tempo para explodir o mercado de serviços relacionado ao IHM de embarcações e à adequação e operação dos estaleiros na reciclagem ou desmantelamento verde dessas embarcações. Certamente, esse mercado demandará fortemente mão de obra especializada, em especial, profissionais da Química.

Referências

ANTAQ, Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Convenções Internacionais. Convenção de Hong Kong – 2009. Disponível em: < https://www.gov.br/antaq/pt-br/assuntos/atuacao-internacional/ConvenodeHongKong2009.pdf>. Acesso em: 02 de mar. 2023

Cournoyer, M.E.; Maestas, M.M.; Porterfield, D.R.; Spink, P. Chemical inventory management: The key to controlling hazardous materials. Chemical Health and Safety 12, issue 5, p. 15-20, 2005.

IMO, International Maritime Organization. Recycling of ships. The development of the Hong Kong Convention. Disponível em: < https://www.imo.org/en/ourwork/environment/pages/ship-recycling.aspx>. Acesso em: 02 de mar. 2023.
Lakhal, S.Y.; Khan, M.; Islam, M.R. An ‘‘Olympic’’ framework for a green decommissioning of an offshore oil platform. Ocean & Coastal Management 52, p. 113–123, 2009.

Marinha afunda o porta-aviões desativado São Paulo, após meses de impasse. G1 Globo. Disponível em:< https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2023/02/03/marinha-afunda-o-porta-avioes-desativado-sao-paulo-apos-meses-de-impasse.ghtml>. Acesso em: 27 de fev. 2023.